Giovani Martins na cabeça, Febre90s no fone
Gosto do título desse livro. Me lembra o refrão de O trem azul do Lô Borges, embora não tenha nenhuma relação proposital segundo o autor. Ainda assim, enquanto eu lia cada conto do livro de estreia de Geovani Martins, a ideia do título me retornava, me fazendo pensar: por que O sol na cabeça?

Veja, eu sou sergipano. Sol pra mim é mormaço. É o clima abafado da falta de planejamento urbano. O ardor na pele e a dor de cabeça ao sair de casa durante o dia. É a visão escura, as tardes alongadas pelo calor que entorpece, debilita.
Às vezes é praia.
Vi um pouco disso em O sol na cabeça. Martins tem uma escrita quente, podendo queimar ou aquecer a depender do conto. São muitos os artistas que tentam retratar o cotidiano das classes mais baixas através da própria experiência, mas o autor não restringe essas vivências à estereótipos de pobreza e criminalidade, tampouco cai numa falsa complexidade acrítica. Existe certo e errado, bem e mal. Porém essas noções são tratadas com o respeito que merecem, sem subestimar o leitor e nem excluir a multiplicidade humana.

O livro abre com o conto Rolézim, que narra um dia inteiro na perspectiva de um garoto da favela que sai com alguns amigos para a praia. A intenção era apenas aliviar o calor e fumar um baseado pra passar o tempo, o que é narrado com muita naturalidade através do dialeto carioca.
“(…) ninguém tinha seda! Mó parada, né não, menó? (…) Ninguém queria pedir pros maconheiro playboy lá da praia, tudo mandadão, cheio de marra. Quando eles tão sozinho, olha pra tu tipo que com medo, como se tu fosse sempre na intenção de roubar eles. Aí quando tão de bondão, eles olha tipo que como fosse juntar ni tu. É foda.”
Essa linguagem coloquial atravessa o livro, variando de acordo com a perspectiva dos personagens. Fora de contexto pode causar algum um estranhamento, mas a partir do segundo conto você está imerso na oralidade de tal forma que parece que alguém está contando a história no seu ouvido. Isso me faz pensar o quão legal poderia ser um audiobook dramatizado desse livro.
O segundo conto, Espiral, é talvez o melhor do livro. Narra o processo de percepção de um estudante de que as pessoas o temem pela sua origem. No ponto de ônibus, na rua, adultos o olham de esguelha, escondem bolsas e pertences. O garoto percebe cada vez mais a mudança da linguagem corporal das pessoas e a tensão no ar nos ambientes em que ele chega.
Entretanto, o que poderia parecer um retrato comum do racismo e preconceito de classe fica mais complexo à medida que o personagem enxerga o medo que ele causa com um certo fascínio.

O que o rapper pumapjl conta de forma descontraída na música Aquelas coisas, mostrando uma cena tão comum pra quem é de periferia, pode ter consequências muito mais sombrias do que imaginamos. Em nenhum momento o garoto se queixa de falta de acesso a bens de consumo, muito menos manifesta o desejo de roubar aqueles que veem nele um ladrão em potencial. O que há aqui é outra faceta da dinâmica de classes na qual o autor questiona como um adolescente de periferia reage ao ser submetido ao preconceito explícito diariamente, evidenciando a profecia autorrealizável da sociedade brasileira sobre a juventude periférica.
Ao longo da obra, Martins explora diversos aspectos ligados a periferia, tais como as religiões de matriz africana frente ao avanço do neopentecostalismo, as relações familiares, a mendicância, o pixo. A amplitude é tamanha que é subestimar o autor reduzindo sua escrita como puramente baseada em experiência.
Embora haja muita violência no Rio de Janeiro de Martins, o autor também destaca o que há de bonito nesse cenário, sejam as paisagens pelas quais o estado é mundialmente conhecido ou pelas alegrias do cotidiano, mesmo dentro da periferia.
E se não temos um audiodrama dos contos de Giovani Martins, talvez o mais próximo disso sejam as músicas do Febre90s, duo formado pelo produtor SonoTWS e o MC pumapjl. Não que faltem exemplos de artistas que retratem as contradições do Rio de Janeiro ou do Brasil em geral. Porém o sotaque arrastado e o storytelling da dupla me remete muito à escrita de O sol na cabeça.

Outro conto que demonstra a amplitude das temáticas que o autor aborda é A viagem. Aqui vemos o lado paradisíaco do Rio de Janeiro através dos olhos de Rafa que está de viagem com três amigos da universidade. Entre apreciação da paisagem e viagens de alucinógenos, Rafa reflete sobre como um dia pode mudar relacionamentos de meses e até anos.
Aliás, essa é outra característica dos personagens de Gabriel Martins. Ainda que imersos no agora, por vezes estes desassociam da realidade, se entregando a reflexões que são muito fáceis de se relacionar.
“Nessa época do ano todo mundo fica exagerado. Uns no estresse, outros no amor, na ansiedade, na culpa, na busca pela liberdade. Ficamos mais vulneráveis a nós mesmos, essa é a verdade. (…) Porque essa época sempre nos ataca como o fim do mundo. E o fim do mundo ou nos dá vontade de viver a vida até que tudo exploda e depois venha a calma do vazio ou nos deixa decepcionados por saber que terminaremos incompletos. É por isso que em dezembro devemos ser fortes.”
Pensando bem, talvez não seja tão à toa assim essa relação com a música de Lô Borges. O sol na cabeça também é sobre lembranças, “coisas que ficaram por dizer”, mas que retornam afirmando sua importância, nos lembrando que o Sol tem diversas cores e intensidades. Ao falar da periferia, o autor traz personagens acima de tudo humanos, cheios de uma introspecção cativante tal qual as letras do Febre90s.
O livro demonstra uma certa tendência que observo nos hits literários nacionais dos últimos anos — narrativas um tanto minimalistas e extremamente pessoais. Independente do quanto da vida do autor está de fato nesse livro, tudo aqui soa muito autêntico. É sem dúvida um dos melhores livros que li esse ano.